sábado, 31 de março de 2007


Distante

Já não existe a minha boca
Já não existe o meu peito
Perjúrio formou uma forma
Visão perfeita, inigualável preceito

Vento agreste, cabelo enublado
Órbitas ondeantes de um raio de luz pintado
Júblio matinal, fresco ar de leito arrepiante
Colo enlaçante, ondas brancas de suavidade
Já não existem as minhas mãos
Apenas o toque que as rosas formaram
Apenas o sangue que pinta o horizonte
Distante.

Onde estou eu, que já não estou?
Onde existo, se já não existo?

Já não existe o meu corpo
Apenas a alma que me tornou ser
E me ostentou desaparecer
Num instante caminho de distante finito.

Já ninguém me vê, já ninguém me ouve
O vento vagueia, pelas encostas, incerto
Já não existe a minha alma
Apenas o meu ser
Que todos sentem, abstracto

Gaivotas dispersas em pedaços de vento,
Madrugada adormecida num triste despertar...
 
posted by sónia at 16:49 | 12 comments

domingo, 25 de março de 2007


Parabéns, mãe!


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...

Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."

Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...

Boa noite. Eu vou com as aves!

"Poema à mãe",
Eugénio de Andrade
 
posted by sónia at 16:10 | 3 comments

sexta-feira, 16 de março de 2007


Partido reformista

O partido reformista apareceu um dia, de repente, sem se saber como, sem se saber porque. Era um estafermo austero, pesado, de voz possante. Ninguém sabia bem o que aquilo queria. Alguns diziam que era o sebastianismo sob o seu aspecto constitucional; outros que era uma seita religiosa para a criação do bicho-da-seda. Corriam as mais desvairadas opiniões. Apresentava-se tão grave, tão triste, tão intransigente que no Chiado afirmava-se ser um personagem da história romana — empalhado!
Ninguém se aproximava dele no meio da imensa impressão que causava nos moços de fretes. Por fim, pouco a pouco, alguns jornalistas mais curiosos foram-se chegando, começaram a tocar-lhe com o dedo, a ver se era de pau. Era de carne, verdadeiro. Percebeu-se mesmo que falava. Então os mais audaciosos fizeram-lhe perguntas.
—Senhor—disseram—, espalhou-se por aí que vindes restaurar o País. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de reconstituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc. Assim, por exemplo, a questão religiosa é complicada. Qual é o vosso princípio nesta questão?
— Economias!—disse com voz potente o partido reformista.
Espanto geral.
— Bem! E em moral?
— Economias! — bradou.
— Viva! E em educação?
— Economias! — roncou.
— Safa! E nas questões de trabalho?
— Economias! — mugiu.
— Apre! E em questões de jurisprudência?
— Economias! — rugiu.
— Santo Deus! E em questões de literatura, de arte?
— Economias! — uivou.
Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Perguntaram-lhe:
— Que horas são?
— Economias! — rouquejou.
Todo o mundo tinha os cabelos em pé. Fez-se uma nova tentativa, mais doce.
— De quem gosta mais, do papá, ou da mama?
— Economias! — bravejou.
Um suor frio humedecia as camisas. Interrogaram-no então sobre a tabuada, sobre a. questão do Oriente...
— Economias! — gania.
Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias. Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender. O partido reformista é o papagaio do Constitucionalismo.

Eça de Queiróz
Maio de 1871
 
posted by sónia at 10:24 | 4 comments

Nome: Sónia Correia
Idade: 21
Cidade: Almada
Profissão: Estudante
E-mail: scorreia.sc86@gmail.com

A vida é um mar de espinhos
onde rosas navegam
num abismo ardente

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